Em tempo de eleições,
mostram-se inevitavelmente dois tipos de pessoas com pontos de vista
opostos: os que se abstêm e os que votam. Tanto uns como os outros têm
argumentos para as suas posições. Aquele que não vota afirma que o voto é
inútil e incapaz de causar mudança real. O que vota afirma que votar é
um dever de todos os cidadãos e que é devido à abstenção que não existe
mudança. Dentro do grupo dos que não votam, estão os anarquistas.
Mas porque é que os anarquistas não votam, afinal? "Certamente será
porque o único desejo deles é causar o caos e a desordem. Eles não têm
posições políticas para além disso!", dirá alguém. "Não votam, porque
são egoístas e querem uma sociedade onde é cada um por si", dirá outro.
Ambas as hipóteses estão muito longe da verdade.
Os anarquistas
não votam, porque desejam uma sociedade que, através dos mecanismos
democráticos actualmente existentes, é inalcançável. Pura e
simplesmente, não existe qualquer partido que possa, através do poder
estatal, construir uma sociedade sem estado nem capital. Isto
confirma-se, porque, primeiro que tudo, dentro de uma democracia
capitalista é impossível construir-se uma sociedade sem capital, sem que
haja uma revolução, na qual os trabalhadores tomem controlo dos locais
de trabalho e dos bairros. Qualquer governo que tentasse construir uma
sociedade socialista (com este termo entende-se uma sociedade sem
classes) dentro de uma democracia burguesa enfrentaria imensos
obstáculos, e, caso conseguisse ultrapassá-los, teria depois de entregar
o poder ao povo e auto-extinguir-se. No entanto, o que a história nos
mostra é que os governos se recusam sempre a fazer isso, preferindo
manter-se na sua posição de autoridade, e utilizá-la para benefício
próprio.
Mas agora haverá alguém a dizer: "Eu bem sabia! Estes
anarquistas são todos uns sonhadores utópicos! Todas as suas propostas
são de coisas impossíveis ou inalcançáveis." Isto, novamente, é falso. A
proposta de uma sociedade anarquista, sem classes e organizada pelo
povo em conselhos e assembleias, é perfeitamente realizável. Os
trabalhadores têm a força necessária para mudar tudo, e construir uma
sociedade justa, livre e boa, mas esta força depende da sua organização e
união. A sociedade que queremos não pode ser alcançada pelo voto, mas
pode ser alcançada pelo desejo e acção de uma classe trabalhadora unida e
ciente da sua força comum.
"Isso é tudo muito bom, mas
parece-me que estamos muito longe de uma revolução desse género. Tendo
isso visto, enquanto a revolução não vem, não faria sentido os
anarquistas votarem no partido cujas posições mais se aproximem às
suas?", perguntará alguém. À primeira, a resposta a isto será: sim, faz
sentido. No entanto, reflectindo mais acerca do assunto, verifica-se que
a conclusão permanece sendo: o voto é inútil. Existem vários factores
que fazem com que este seja o caso. O primeiro desses factores é o facto
de as campanhas eleitorais dos grandes partidos serem financiadas pelos
grandes empresários e banqueiros - aqueles a que chamamos capitalistas
ou burgueses. Estes partidos são grandes devido a esse financiamento,
que os torna conhecidos e serve para aumentar a sua reputação com a
população do país, e apenas são financiados porque têm posições que
agradam aos capitalistas.
Existe uma relação de simbiose entre a
classe política e a classe capitalista. A maior parte dos políticos, de
facto, vem de famílias capitalistas. O grande empresário financia o
político e ajuda-o a ganhar as eleições, e o político ajuda o empresário
passando as leis que ele quer, e recapitalizando a sua empresa com
largas somas monetárias quando essa declara falência. O capitalista não
irá financiar ninguém que não o prometer ajudar. Por esse motivo, os
partidos que não interessam à burguesia quase nunca vencem eleições.
Muitos são, em vez disso, desconhecidos à vasta maioria dos votantes, e
as suas posições raramente são vistas. Outros, têm uma base sólida de
votantes, mas nunca passa de um determinado número, pois os meios de
comunicação, que pertencem aos capitalistas, passam propaganda contra
esses partidos, difamando-os ou tentando criar medo nas mentes das
pessoas. No caso de um partido que não interesse à burguesia ganhar as
eleições, depressa surgirão os grandes empresários, prometendo a esses
políticos grandes riquezas em troca da sua obediência. Foi isso o que
sucedeu com o Syriza da Grécia, que, verdade seja dita, nem sequer era
muito radical. Os mesmos políticos que queriam, supostamente, renegociar
a dívida de modo a que o pagamento dessa não se baseasse na miséria do
trabalhador grego, mal chegaram às mesas de negociações, mudaram
"misteriosamente" as suas posições, e acabaram por aceitar TODAS as
exigências da Troika. As suas alegações de que simplesmente não era
possível a renegociação não passam de mentiras para cobrir a sua
colaboração com aqueles contra quem prometeram lutar.
No nosso
caso português, votar tanto no PS como no PSD/CDS não passa de uma
perpetuação das mesmas políticas neo-liberais que nos governam - as
políticas que já tanto nos tiraram, e que nos tencionam tirar ainda
mais, para alimentar a ganância infindável do capital. Directamente
antes das eleições vê-se sempre o mesmo: o actual governo age como se
fosse afinal muito simpático, enquanto o partido da oposição age como se
fosse o total oposto daquilo que o outro foi, e daquilo que esse mesmo
já foi, antes de ter sido retirado do poder pelo outro. É um ciclo. Cada
vez que um desses vence, o ciclo continua. "Mas então e os outros
partidos?", exige alguém saber.
O BE é composto por uma camada
da classe média que deseja uma espécie de social-democracia com ênfase
especial em problemas sociais. Na realidade, se este partido fosse para o
poder, faria exactamente o mesmo que o seu partido irmão grego, o
Syriza, fez: ocupou o seu lugar no ciclo, e continuou as políticas dos
grandes empresários e banqueiros.
O LIVRE, que promete um
sistema democrático mais representativo, apenas faria continuar o ciclo,
só que com primárias abertas. Já vimos o quão fácil é para o
capitalista comprar alguém. Mesmo que o LIVRE tentasse implementar uma
espécie de democracia directa, a existência dessa não seria permitida
pelos capitalistas, que fariam tudo o que fosse necessário para impedir
essa implementação. A coligação AGIR não passa de um grupo de políticos
oportunistas que apenas desejam enriquecer-se a si mesmos.
O
obscuro PNR ocuparia o seu lugar no ciclo, continuando as políticas dos
burgueses, mas implementando políticas sociais da direita reaccionária.
Quanto à CDU, existem duas hipóteses: ou o partido não passará da
actual ideologia social-democrata que propagandeia, ou agirá mesmo como
um partido marxista-leninista. No primeiro caso, a CDU apenas ocuparia o
seu lugar no ciclo, como fez o Syriza, só que com vocabulário e
desculpas diferentes. No segundo caso, que é altamente improvável, a
classe capitalista faria tudo para o impedir de governar, incluindo
provocar uma guerra civil, ou provocar uma invasão por uma certa
potência estrangeira bem conhecida por invadir países com governos
marxistas-leninistas. Mesmo que o partido e os seus apoiantes
conseguissem vencer essas duas ameaças (com o custo de muitas vidas e da
devastação do país), o que acabaria por suceder seria o que sucedeu a
todos os países que já estiveram nesta posição (a lista de exemplos é
longa): a classe política iria solidificar o seu controlo, criar um
regime ditatorial onde a riqueza flua em direcção dos altos oficiais do
partido, acabar com todos os esforços de criar uma sociedade
verdadeiramente comunista e, no final, deixar o capitalismo lentamente
entrar. Assim, vemos que, independentemente de quem votarmos, o capital é
quem vencerá.
"Então mas isso não quer dizer que estamos
condenados? Não quer dizer que nunca irá haver mudança a sério? Então
afinal o que os anarquistas dizem é que nos devemos resignar e
submeter-nos voluntariamente e sem resistência à miséria que nos é
imposta?" Não. Nunca estaremos condenados enquanto haja ar nos nossos
pulmões e esperança nos nossos corações! "Mas então como é que
fazemos?".
Organizamo-nos! Aprendamos que vivemos num sistema
onde a classe capitalista vive da nossa miséria: é essa a natureza do
capitalismo. Aprendamos que sempre será assim enquanto existam classes -
mesmo num sistema social-democrata existe exploração, e esse estado
social apenas existirá temporariamente para acalmar os ânimos dos
trabalhadores, e que após essa tarefa ser cumprida, irá haver sempre uma
transição para o neo-liberalismo: o sistema ideal da classe
capitalista. E aprendamos sobretudo,que a nossa força está na união e na
solidariedade. Se queremos viver bem, e dar um bom futuro aos nossos
filhos e netos, temos de nos organizar agora: encontrando outras pessoas
descontentes, aprendendo, ensinando, formando grupos, assembleias de
bairro, sindicatos, associações de classe, colectivos de estudantes e
lutando contra os avanços e investidas do capital contra nós, preparando
as condições para a revolução onde iremos mudar a sociedade pela base.
Não votamos porque não temos fé nos políticos. Temos fé em nós mesmos, e na nossa força.
João Morais
*Artigo de opinião de um membro do Núcleo de Lisboa da AIT-SP