quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Um relato sobre Greve Geral de 24 de Novembro: Acções da AIT-SP em Lisboa e no Porto

Esta foi a primeira greve geral convocada conjuntamente pela CGTP e pela UGT nos últimos 22 anos e isto, por si só, deveria lançar alguma luz sobre a situação social neste país. De facto, a conflitualidade social em Portugal é bastante baixa e o número de greves tem vindo mesmo a descer nos últimos 30 anos, apesar da degradação da situação da classe trabalhadora. As taxas de sindicalização também tendem a baixar, dado que as duas principais centrais sindicais portuguesas, controladas por partidos políticos, servem mais para tranquilizar e conter os conflitos do que para lutar contra a exploração, e isto não tem passado despercebido.

A sociedade portuguesa atravessou transformações consideráveis no último meio século, desde uma rápida industrialização a partir da década de 1960, alimentada pelo influxo de capital estrangeiro, a partir da qual haveria de emergir uma classe trabalhadora mais combativa e organizada, até uma igualmente rápida desindustrialização, à medida que se encontraram fontes de mão-de-obra mais baratas na Europa de Leste e na Ásia. Actualmente, a economia portuguesa é dominada por pequenas e ineficazes empresas de serviços, nas quais os trabalhadores estão mais isolados uns dos outros, têm menor tradição de luta, estão geralmente sujeitos a contratos precários e recebem os salários miseráveis que permitem que essas empresas continuem a sobreviver. Todo este sistema mergulhou num estado de crise aguda na última década e os trabalhadores foram as suas principais vítimas.

Depois de ter lutado tão duramente para desmobilizar os trabalhadores na década de 1970, quando à queda da ditadura de Caetano se seguiu um período de acção directa massiva levada a cabo pela classe trabalhadora, a que se costuma chamar de PREC, a Esquerda começa a tomar consciência das consequências de ter sido demasiado bem sucedida, uma vez que já não há ninguém disposto a lutar pelas migalhas do Estado Social que sobreviveram aos contínuos e violentos ataques da burguesia, mas re-mobilizar as massas e iniciar uma verdadeira luta é, para ela, algo demasiado perigoso, pois teme que as coisas possam facilmente fugir ao seu controlo. Assim se compreende que a sua luta seja sempre levada a cabo de forma deliberadamente limitada e ineficaz. Tal como as greves de um só dia.

Desta vez, a UGT, dirigida pelos socialistas, uniu-se à greve, apesar de sentir que não há muito a fazer uma vez que o seu partido já está no governo, pretendendo simplesmente pedinchar alguma coisa do Estado, para que todos os “sacrifícios” destinados a apaziguar a finança internacional que especula contra a dívida portuguesa não recaiam exclusivamente sobre os ombros da classe trabalhadora. Não é sequer necessário dizer que as suas vozes não chegarão às alturas dos gabinetes ministeriais, nem tampouco do que pertence a Helena André, actual Ministra do Trabalho e ex-burocrata da UGT, agora a mãos com a ingrata tarefa de disputar os números da greve com os seus antigos camaradas. Quanto à outra central sindical, a CGTP, dirigida pelos comunistas, pretende capitalizar o descontentamento popular e fazer eco das palavras de ordem do Partido Comunista, já que o dia das eleições presidenciais se está a aproximar e o PCP concorre com um candidato próprio, em defesa da “produção nacional”. Desnecessário será dizer que ganharão muito pouco com isto. As pessoas já os viram em acção demasiadas vezes para continuarem a acreditar neles.

Considerando que as razões para o descontentamento abundam e que as pessoas querem realmente fazer algo, esta greve seria de facto maior do que a anterior, em 1988. Durante um dia, não houve metro em Lisboa, nem cacilheiros entre a margem sul do Tejo e Lisboa. A maior parte dos autocarros e comboio não circulou. Todos os portos portugueses estiveram encerrados, e os vôos de e para os aeroportos portugueses tiveram de ser cancelados, muito para desagrado do governo que  pressionou os trabalhadores aeroportuários para não aderirem à greve. As escolas estiveram fechadas, na sua maioria, assim como a maior parte dos serviços públicos, apesar da pressão das administrações para que se mantivessem abertos. Na indústria têxtil, onde os sindicatos costumavam ter influência, a adesão à greve foi inferior, mas a jóia da coroa da indústria portuguesa, a fábrica de automóveis franco-alemã Auto Europa, aderiu à greve e parou a produção durante um dia. Até um apparatchik simpático para o patronato como António Chora, militante do Bloco de Esquerda e líder da comissão de trabalhadores, sentiu que tinha de aderir. O sector dos serviços, onde o trabalho precário é comum, foi o menos afectado de todos. A maior parte das lojas, supermercados e centros comerciais continuou de portas abertas e só a falta de transportes em funcionamento manteve os clientes afastados. Desnecessário será dizer que a maioria dos call centers – se não todos – também esteve aberta e a funcionar normalmente. A alguns deles faríamos uma pequena visita.

Mesmo tendo a greve sido importante, os números avançados pela CGTP e imediatamente repetidos pelo Partido Comunista – adesão de três milhões de trabalhadores – são um grosseiro exagero. Em Portugal, onde a população activa é de pouco mais de cinco milhões, dois em cada cinco trabalhadores estão sujeitos a contratos precários, e ainda temos de contar com quase um milhão de falsos trabalhadores independentes. Estes não puderam aderir à greve, por temerem perder o emprego, apesar de terem razões mais do que suficientes para protestar.

Acções em Lisboa


Temos de dizer que a reacção às nossas acções, antes e durante a greve, foi bastante positiva. Editámos um número especial do Boletim Anarco-Sindicalista dedicado à Greve Geral e distribui-mo-lo durante a semana anterior. A maior parte das pessoas pareceram interessadas e algumas até pediram algumas cópias extra para ajudarem na distribuição.

No dia da greve organizámos um piquete informativo juntamente com outros companheiros anarquistas. De manhã, atravessámos Lisboa distribuindo o nosso boletim e outros panfletos. Entrámos em várias lojas, restaurantes, supermercados e centros comerciais que estavam abertos e distribuímos a nossa propaganda aos trabalhadores. Muitos destes trabalhadores reagiram positivamente aos panfletos e disseram-nos que não podiam fazer greve pois seriam despedidos. Visitámos alguns call centers onde lemos ao megafone alguns dos nossos textos e apelámos à participação na manifestação anti-capitalista que se realizaria à tarde.

Depois do almoço, continuámos a distribuir panfletos e a apelar à participação na manifestação até chegarmos ao  Largo de Camões, onde esta teria início.

Vários colectivos anti-capitalistas e anti-autoritários convocaram uma manifestação anti-capitalista para as 15 horas no Largo de Camões, no centro de Lisboa, sob o lema “Pelo bloqueio e pela sabotagem – A greve não pára aqui”. Esta foi a única manifestação convocada para o dia da Greve Geral em Lisboa. Quando chegámos ao Largo de Camões, estavam presentes apenas umas 200 pessoas, mas a manifestação acabou por engrossar numa massa de 1000-1500 pessoas gritando palavras de ordem como “A..., Anti..., Anti-capitalistas”, “O povo, unido, não precisa de partido”, “Guerra social contra o Capital” ou “Sabotagem, Greve Selvagem”, percorrendo as ruas da Baixa de Lisboa. Juntámo-nos com bandeiras vermelhas-e-negras e uma faixa onde se lia “Contra a exploração capitalista! Pela igualdade social! Unidos e auto-organizados nós damos-lhes a 'crise'!” e  distribuímos os panfletos restantes.

Após a manifestação, algumas pessoas ocuparam uma casa abandonada e chamaram-lhe “Casa do Grevista”, oferecendo uma refeição grátis a todos os que ali se dirigiram. Esta casa foi desalojada pela polícia no dia seguinte.



Acções no Porto

Na manhã da Greve Geral, atravessámos os bairros antigos e empobrecidos do Porto, com bandeiras, tambores e uma faixa vermelha-e-negra onde se lia “Unidos e auto-organizados, nós damos-lhes a 'crise'!”, com companheiros do colectivo anarquista Hipátia. Distribuímos panfletos e lemo-los ao megafone em vários locais, apelando às pessoas para que saíssem à rua e se dirigissem à praça central, onde à tarde teria lugar um comício organizado pelos sindicatos oficiais. Também gritámos palavras de ordem como “Não aos cortes nos direitos sociais e laborais!”, “Contra a fome e a pobreza, cortem na riqueza!”, “Mudar as moscas não chega, temos de limpar a merda toda!”, “Contra o Estado e o Capital - Resistência Social e Revolução Social”. Os nossos panfletos foram recebidos com curiosidade, mas a maioria das pessoas permaneceu em casa e não se juntou a nós.

À tarde, com um grupo maior, passámos junto à estação de São Bento. Nesse momento, os sindicatos oficiais estavam a realizar uma conferência de imprensa ali perto. Começámos a cantar algumas canções, como a versão portuguesa da velha música da CNT “A la Huelga”, “A Internacional” e outras, parando para ler alguns artigos do nosso boletim especial sobre a Greve Geral e discursando sobre a necessidade de auto-organização contra os patrões, o Estado e a “crise”. Mais pessoas juntaram-se a nós e, depois, dirigimo-nos à Praça da Liberdade, onde continuámos a ler a nossa propaganda anarco-sindicalista e a cantar, acompanhados pelas pessoas ali presentes.

Reparámos que a maior parte das pessoas que se aproximavam de nós eram membros ou simpatizantes do Partido Comunista, mas pareciam curiosas e até demonstraram alguma simpatia. Então, decidimos fazer uma pequena assembleia popular, convidando toda a gente a usar o megafone e a falar sobre as suas razões para estar revoltado contra a situação actual e aderir à Greve Geral. Então, algumas pessoas, que assumimos serem membros do Partido Comunista, começaram a usar o seu próprio megafone, mas estabelecemos um diálogo engraçado com eles, uma espécie de “teatro do oprimido”. Eles ficaram um pouco confusos e abandonaram o local.

Durante este tempo todo, não vimos nem polícias, nem sindicalistas “oficiais”. Nem a esperada manifestação habitual teve lugar. Seguramente, esta não foi uma verdadeira Greve Geral, mas foi uma óbvia demonstração de desconfiança no governo, Estado, patrões e gestores para lidarem com a “crise” pela qual insistem em fazer-nos pagar.

Associação Internacional dos Trabalhadores,
Secção Portuguesa – AIT-SP

Lisboa, 14 Dezembro 2010